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mar 16 2018

ARTIGO: A arte imita a vida

ANDRÉ GUSTAVO STUMPF, jornalista

Pequenos assassinatos (Little Murders) é um filme lançado em 1971, dirigido por Alan Arkin, tendo como atores principais Eliott Gould e Donald Sutherland.

É uma história interessante. O galã, que vive em Nova Iorque, não acredita em nada. Trata-se de um cético absoluto, mas a namorada dele é uma otimista irrecuperável. Os dois se casam e a vida começa a tomar direção inesperada.

Os assassinatos urbanos se multiplicam e eles passam a viver numa residência protegida por muros, telas de aço e disparam contra tudo e contra todos. A violência se torna banal.

Naquela época, quatro décadas atrás, Nova Iorque era uma cidade quase tão perigosa quanto o Rio de Janeiro de hoje. Várias lojas comerciais no centro da cidade operavam com as portas fechadas.

O cliente ficava do lado de fora, separado por uma parede de vidro, onde usualmente havia a expressão: a prova de balas. O consumidor passava o dinheiro por uma gaveta e o vendedor colocava o produto em outra.

Nos táxis, o motorista era separado do passageiro também por grossa parede de vidro. Não raro, ao lado do motorista viajava um enorme cão de guarda.

A violência racial também era comum na grande cidade da costa leste dos Estados Unidos. Hoje a situação é muito diferente. É possível caminhar à noite em Nova Iorque sem se expor a grandes perigos. Depende do local e da hora. Mas em nada se parece com o que ocorria nos anos 70.

Nos Estados Unidos, a violência é produto do capitalismo selvagem, onde Deus é o dólar; de um problema de raça, brancos versus negros; de religiões, judeus, muçulmanos e protestantes têm diferenças entre si. Mas o tempo ensinou a todos viver em paz. O Harlem, que era bairro proibido para brancos, hoje é local obrigatório de visitação turística.

As circunstâncias mudam. Hoje o problema, como já foi dito aqui, é a droga. Nos Estados Unidos os grandes traficantes não tomaram conta das cidades. O tráfico existe, mas continua circunscrito aos subterrâneos.

As policias exercem fortíssima repressão. Não há discurso para reduzir a pressão, nem as autoridades pretendem relaxar. Mesmo na Califórnia, estado liberal onde o consumo pessoal da maconha foi liberado, o tráfico de drogas é violentamente reprimido. Mas o mercado norte-americano é apetitoso. Os vizinhos sabem disto.

O problema passa, então, a ser latino-americano. No México, o governo colocou as Forças Armadas para combater o tráfico de drogas. Pessoas morrem aos magotes. Não há muro que evite o trânsito de entorpecentes para o outro lado do Rio Grande. A barreira não serve para nada.

A América Central está totalmente subvertida pelo tráfico de droga. A subversão de valores é visível. Os policiais mal pagos, mal armados, preferem recolher os dinheiros dos traficantes. É grana fácil. Basta não atrapalhar o negócio.

A droga viaja desde o Peru, Bolívia e Colômbia. Atenção especial para o que ocorre, neste momento, na Colômbia. O governo de Bogotá conseguiu fazer a paz com as Forças Armadas Revolucionárias (FARC), que se transformaram em partido político.

O Exército de Libertação Nacional (ELN) ainda não concluiu o entendimento. Há negociações em curso. Boa parte da sociedade colombiana não quer acordo nenhum com guerrilheiros. Muitas famílias estão enlutadas. Perderam parentes. A pacificação ainda está longe.

Mas os cultivares de coca deixaram de ser controlados pelas FARC. Novos parceiros estão emergindo, entre eles alguns brasileiros. É preciso refazer o retrato da atual produção da droga. Mudou muito nos últimos tempos.

Este cenário está se reproduzindo no Brasil. Boa parte da polícia, em diversos estados, prefere fechar os olhos para o tráfico e receber algum trocado do traficante. Em maior ou menor medida, essa turma integra o que se convencionou chamar de banda podre.

No caso carioca, essa banda podre se mistura com as milícias que dominam as comunidades. Vendem gás de cozinha, televisão a cabo, e facilidades. É um seguro de vida. Pagar pela proteção é a maneira de sobreviver no inferno das comunidades pobres nas grandes cidades brasileiras.

A morte da vereadora Marielle Franco é sinal de que o país está bordejando o abismo. Os traficantes se estabeleceram, as milícias dominaram e a população passou a ser refém da ineficiência do Estado.

A natureza tem horror ao vácuo. Quando o Estado não assume suas responsabilidades, outros protagonistas passam a controlar o espaço. A norma então passa a ser a desesperança, o ceticismo, a banalização da violência e os pequenos assassinatos. O filme mostrou, quatro décadas atrás, que a arte imitou a vida.

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