CARLOS FINO
A recente deslocação do Secretário de Estado John Kerry a Sochi, no Mar Negro, foi a primeira visita de uma alta personalidade norte-americana à Rússia, desde ainda antes do início do conflito na Ucrânia, o que, só por si, já diz praticamente tudo: depois de dois anos de hostilização e tentativa de “isolar” Moscovo, Washington parece agora estar disponível para uma suavização das relações com o Kremlin.
Mas os pormenores da deslocação são ainda mais reveladores.
Em primeiro lugar, o próprio local do encontro: Sochi, a estância balnear russa por excelência, onde os dirigentes do Kremlin fazem questão de ter uma casa de férias (Pútin não é excepção) e onde Moscovo investiu pesadamente para possibilitar a realização dos últimos Jogos Olímpicos de Inverno, tão criticados a Ocidente.
Depois, a duração das reuniões: Kerry passou três horas com o seu homólogo russo, Lavrov, e quatro com Pútin, analisando todos os principais assuntos de interesse mútuo – do Irão à Síria, passando pelo ISIS e pela Ucrânia.
Finalmente, o teor das declarações, o dito e o não dito.
No caso da Ucrânia, onde EUA e Rússia têm agora um interesse comum na gestão da dívida de Kíev, o silêncio de Kerry sobre a Crimeia é bem significativo.
O responsável pela diplomacia da Casa Branca foi inclusive mais longe, aconselhando o presidente ucraniano Poroshenko a “pensar duas vezes” antes de reacender o conflito no leste, para o qual – repetiu várias vezes – a única solução é cumprir os acordos de Minsk.
Estamos a ano e meio do final do segundo mandato de Obama e se alguma coisa o actual presidente americano pode deixar para a História é um acordo crucial sobre a questão da energia atómica do Irão e eventualmente outro que ponha fim à guerra na Síria – duas questões para as quais precisa da colaboração de Moscovo, que tem uma relação secular com Teerão e outra muito próxima com Damasco que vem pelo menos do final da Segunda Guerra Mundial.
Não houve ainda uma verdadeira viragem nas relações entre os EUA e a Rússia. O entendimento parece antes ter sido o de concordar em desacordar numa série de pontos, mas convergir e cooperar onde for possível. E isto, face ao clima de hostilidade e quase confronto dos últimos tempos, já parece um começo degelo.
Depois de dois anos de impasse na frente leste, o inquilino da Casa Branca resolveu por isso fazer o que se impunha: falar com os russos, como aconselhava Garrincha. (Site Portugal Digital)