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mar 31 2014

LIÇÃO DA DITADURA: ESQUERDISTAS E DIREITISTAS SÃO A MESMA MERDA

RENATO RIELLA

Há 50 anos, os militares tomaram o poder no Brasil (64-84), rasgando a Constituição. A geração que viveu a ditadura sofreu muito ao conviver com direitistas e esquerdistas fanáticos, dois grupos inimigos da democracia, castradores da palavra livre.

Muitos de nós, que apenas tentávamos estudar ou trabalhar, sabíamos que, igual a um coronel escroto, só um líder esquerdista idem.

Por exemplo: tive um tio, Antônio Almeida, tenente do Exército. Era um dos mais corretos seres humanos na face da Terra. Durante alguns anos, acompanhou Guimarães Rosa, como assessor militar em embaixadas. Ele tinha cópia autêntica do discurso que este escritor fez ao ser empossado na Academia Brasileira de Letras.

Vejam só: se os esquerdistas soubessem do meu parentesco com um tenente, coitado de mim! Estaria banido de muitos grupos profissionais e estudantis.

O famoso cineasta Cacá Diegues, em determinado momento, soltou um brado: “Não aceito mais patrulha ideológica”. Mas aí a gente já tinha sofrido disso durante uma década.

Foi preciso que a esquerda chegasse ao poder para nós percebermos que estávamos certos: os esquerdistas e os militares torturadores se mereceram durante vinte anos.

Lembro que, em Brasília, o Exército pegou uns manifestantes desarmados que seriam líderes do comunismo. Torturou os pobres coitados (inclusive alguns jornalistas) e apresentou essas “vítimas” na televisão, como se fossem “informantes” contra a guerrilha.

Tempos depois, esses presos foram soltos e viraram párias na sociedade de Brasília. Eram vistos como dedos-duros, traidores, mas na verdade, talvez, apenas tenham se enfraquecido diante de uma tortura mais forte.

Convivi com diversos deles, que eram tratados como leprosos. Ao conversar com um desses pobres coitados, um ou outro intelectual mais engajado me alertava: “Cuidado! Ele é informante da direita”.

PRINCIPAL IDEOLOGIA? O FUTEBOL

Nas décadas de 60 e 70, você não podia ter um grande amigo como preso político (tive pelo menos dois), nem um tio tenente do Exército. Era um inferno para mim, adolescente em Salvador. Minha principal ideologia era o futebol, esporte praticado toda semana, com direitistas e esquerdistas – que nesse caso se uniam.

Meu pai, Agenor, foi grande comerciante na Bahia. Ele via a ditadura moralista com extremo ceticismo e dizia que nada mudou, nada mudaria. Tempos depois, com a redemocratização, continuou dizendo que os fiscais da Sunab nunca deixaram de extorquir o comércio baiano. Tudo igual, sempre.

Tudo era a mesma porcaria, tanto no esquerdismo de Jango como no direitismo de Geisel. E depois nos fiscais do Sarney. Permanece o mesmo drama nos governos do PT.

Hoje sabemos que direitistas históricos são sócios dos esquerdistas em negócios bilionários, dos quais nós continuamos excluídos (epa! até Delfim Netto é amigo do Lula).

Mas, pelo menos, não temos mais a patrulha ideológica.
Cacá Diegues, na sua luta contra a patrulha ideológica, venceu.

MONSTROS DE IBIÚNA

Em 1968, passei no vestibular de Arquitetura da Universidade Federal da Bahia. Era o foco da esquerda em Salvador.

Na primeira semana, sofremos um trote monstruoso. Os esquerdinhas fizeram até abusos sexuais (leves) com as calouras. No meu caso, como tentei suave reação, pintaram meu longo cabelo ondulado com tinta óleo tóxica. Rasgaram minha calça jeans. Jogaram fora meus sapatos e meus óculos.

Me obrigaram a atravessar, num mergulho, piscina ornamental de seis metros de largura. A água estava podre, cheia de grosso limo.
Sofri grave infecção intestinal, provavelmente pela água podre que ingeri. Quase morri e caí para 55kg (hoje tenho 73).

Meses depois, em setembro de 1968, vimos os miseráveis esquerdistas, que nos aplicaram o trote criminoso, partindo para o histórico Congresso da União dos Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP).

Dias depois, soubemos que o Congresso de Ibiúna (Woodstock da esquerda brasileira) havia sido explodido pelos militares. Os caras que nos torturaram no trote de vestibular estavam sendo torturados por gente da ditadura, em companhia de esquerdistas hoje famosos, entre os quais o mensaleiro José Dirceu.

No sábado, na cantina da Faculdade de Arquitetura, tomamos muita cerveja para comemorar a queda da ditadura esquerdista na nossa escola. E nem éramos de direita. A gente não era nada. Àquela altura, minha atividade principal ainda era o futebol na praia.

REVOLUÇÃO DA DITADURA

A ditadura tomou o poder em 1º de abril de 1964. Eu estava dentro de uma sala no Colégio Maristas de Salvador, com 15 anos de idade, quando os irmãos maristas nos mandaram para casa, porque uma revolução militar havia estourado no país.

Fui de ônibus, no meio da manhã, num longo percurso, e não percebi qualquer anormalidade. Salvador estava distante da confusão.

A chamada revolução não agitou a vida dos baianos. A rigor, de 1964 a 1974, não vimos muito confronto de rua. A Bahia foi um estado que sofreu pouco impacto da ditadura na sua vida diária.

SAUDADE DE JOSÉ WILSON

A convivência com esquerdistas, na ditadura, era paradoxal. Se sofri com monstros torturadores na Faculdade de Arquitetura, conheci gente bem melhor quando comecei a trabalhar em jornal.

Uma dessas pessoas foi José Wilson (nunca soube o sobrenome). Trabalhamos juntos no Diário de Notícias de Salvador, como repórteres. Soube que, embora jovem, foi redator no programa de Chico Anísio, no Rio. Fugiu para Salvador porque teve problemas com a ditadura.

Um dia ele me confessou que, pressionado pela família, estava voltando ao Rio para se entregar ao Exército.

Foi preso, sem julgamento nem nada. Depois disso, a gente se correspondeu umas três vezes por cartas. Hemofílico, contou-me que sofria há meses de sangramento num dente e estava anêmico. Insisti para que sua família procurasse algum general para relatar o caso, etc.

Nesse período, minha mãe, Cecília, acompanhou uma baiana muito rica em viagem ao Rio. Essa mulher frequentava uma vidente de alto nível.

Na consulta, a vidente pediu para falar a sós com minha mãe (a quem nem conhecia) e lhe disse: “Você tem um filho em Salvador, muito moço, mas já famoso. Ele está escrevendo cartas para um preso aqui no Rio e pode ser preso também, se continuar fazendo isso”. Incrível, mas a vidente disse até que me viu atrás das grades.

Na volta para a Bahia, a grande Cecília me perguntou se isso estava ocorrendo comigo. Disse que sim. A partir daí, tomei cuidado e passei a telefonar para um irmão de José Wilson, de vez em quando. Até que ele me deu a pior notícia: “Morreu na prisão. Foi melhor assim. Estava sofrendo muito”.

Chorei. Só chorei. Mas não chorei só por José Wilson. Chorei por um Brasil em que minorias de direita e esquerda provocavam barbaridades, arbitrariedades. Temia que nunca mais tivéssemos lei, nem humanidade, nem liberdade neste incrível país.

CENSURA SEM PIEDADE

Em 1971, chefiei a redação do jornal associado Diário de Notícias, em Salvador. Tinha pouca idade, mas eles tiveram a loucura de me entregar um jornal diário.

Num determinado dia, em plena ditadura, houve intensa greve de táxis em Salvador, com piquetes e repressão dura por parte das forças armadas. Cobrimos com cuidado o movimento e editamos duas páginas.

Às 22 horas, quando estava saindo da redação, chegaram dois agentes da Polícia Federal, sem mandado judicial, nem qualquer papel, e disseram: “Fica proibida qualquer publicação sobre a greve”.

Aleguei que estava sozinho e não tinha como alterar duas páginas. Mas nada! Era tudo ou nada! O jornal seria recolhido nas bancas. Sem opção, desci à oficina gráfica e coloquei um anúncio frio numa das páginas. Na outra, improvisei algum material qualquer.

Fui para casa sabendo que havia sido violentado. Mas o que fazer? Era assim. Quem comprou o jornal não entendeu como uma greve geral não estava em nenhuma página. E quase diariamente agentes da Polícia Federal iam à redação para proibir preventivamente determinadas notícias.

ARBITRARIEDADE NA BAHIA

Na Bahia, fui chamado três vezes à Polícia Federal por causa de publicações consideradas inconvenientes que fiz no jornal Diário de Notícias. O diretor da PF era um velho chamado de coronel Luiz Artur, considerado monstruoso.

Nas vezes em que me convocou, tomei chá de cadeira de quatro a cinco horas num banquinho da recepção. Uma grande humilhação! Não serviam nem água!

Depois de cinco horas, o horripilante Luiz Artur gritava meu nome no corredor e dizia: “Pode ir embora. Você sabe por que foi chamado aqui. Da próxima vez a coisa pode se complicar, viu!” Felizmente escapei.

Não éramos heróis. Não tínhamos noção de rebeldia planejada. Apenas fazíamos jornal com grande entusiasmo numa ditadura em que alguns morreram de forma bárbara.

O mais incrível era ir à Polícia Federal sozinho, sem advogado, sem qualquer diretor do jornal e sem meu pai saber. Se sumisse – estaria sumido para sempre.

MEDIDAS DE EMERGÊNCIA NO DF

Anos depois, na redação do Correio Braziliense, vieram as medidas de emergência. Isso foi na década de 80, quando o chefão do Exército no DF era o maluco ridículo chamado Newton Cruz.

Com as medidas de emergência em Brasília, durante 120 dias os direitos constitucionais ficaram suspensos. Era proibida reunião pública de mais de cinco pessoas e qualquer cidadão podia ser preso por nada.

Como protesto, criei junto com o ilustrador Lopes e o editor Fernando Lemos um reloginho, que saía na primeira página do Correio, todos os dias, afirmando: faltam cem dias para o fim das medidas de emergência; faltam noventa; faltam quarenta…

No meio dessa divulgação decrescente, o Exército percebeu a sutil ironia do protesto e mandou parar o reloginho. Nós, da redação, brigamos muito e mantivemos o símbolo até o fim.

No último dia, o reloginho explodiu grande na primeira página, mostrando que as medidas de emergência estavam acabando. Ufa!
Os protestos eram assim, dentro do possível.

CASO ANA LÍDIA, UM EXEMPLO

Vale a pena contar mais um episódio. Cheguei em Brasília no ano de 1973. Em 1972, a menina Ana Lídia havia sido assassinada. Foi o crime mais bárbaro no início da cidade. E as investigações não andavam, pois os assassinos eram playboys, filhos de grandes autoridades.

Em 1974, como editor de polícia do jornal Diário de Brasília, liderei uma investigação jornalística mostrando que o filho do ministro da Justiça, Alfredo Buzaid Júnior, e Rezendinho, filho do então senador Eurico Rezende, seriam os assassinos.

Drogados, praticaram horríveis crimes sexuais contra a menina lourinha, antes de matá-la. Quando a investigação avançou, a Polícia Federal ameaçou fechar o jornal.

Mudei de redação e fui para o jornal Correio do Planalto. Era explosivo, bem popular. Consuelo Badra era uma das donas. Criamos uma história em quadrinhos diária, sobre o caso Ana Lídia.

Publicamos cerca de dez páginas absurdamente bem desenhadas por Siroba, com roteiro meu. Quando avançamos na definição do caso, apareceu de novo a Polícia Federal. E assim a historinha não teve final. Morreu no meio.

Desisti. Fui para o Correio Braziliense. Um belo dia, a repórter Ilara Viotti, sabendo do meu interesse pelo caso, contou-me que seu irmão foi colega de sala do irmão de Ana Lídia, Álvaro Braga. Perguntei-lhe se entre os colegas havia alguém famoso e ela falou: “Sim, o Buzaidinho!” Era a prova que faltava.

Busquei no colégio as fichas escolares de Álvaro e Buzaidinho e consegui publicar no Correio a denúncia. A essas alturas, ainda na ditadura, Buzaid já não era mais o ministro da Justiça e o Correio é o Correio. Além do mais, Buzaidinho já havia morrido num estranho acidente de carro no Paraná.

Graças a isso, historicamente, em plena ditadura, conseguimos consolidar a versão de que Ana Lídia foi morta por Buzaidinho e Rezendinho. Há poucos anos, a TV Globo fez um programa Linha Direta completa sobre o caso, em que apareci algumas vezes dando depoimento. E essa matéria da Globo eternizou o assunto, afirmando que os assassinos eram mesmo os dois jovens (Rezendinho também já havia morrido: suicidou-se com revólver).

ESTES SÃO RELATOS PESSOAIS DA DITADURA. NOS 20 ANOS, A MAIORIA DOS DIAS FOI DE NORMALIDADE, MAS HAVIA MUITAS PROIBIÇÕES NO AR. HOJE TEMOS UMA GRANDE RIQUEZA: A LIBERDADE DE EXPRESSÃO.

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