CARLOS FINO
Subitamente, sexta-feira à noite, quando se dirigia a pé para casa, numa ponte a poucos metros do Kremlin, em pleno centro de Moscovo, Boris Nemtsov – antigo vice-primeiro ministro e um dos mais populares líderes da oposição liberal russa – foi covardemente assassinado a sangue frio com seis tiros nas costas.
A sua morte provocou choque e espanto generalizados. Compreende-se porquê: embora o clima político se tenha agudizado bastante desde o início da guerra na Ucrânia, com as dificuldades econômicas a aumentarem de dia para dia, devido à ação conjugada das sanções ocidentais e da quebra no preço do petróleo, há já quase uma década que não se registrava um assassinato político na capital russa.
O presidente Pútin nega terminantemente qualquer envolvimento, considerando a morte de Nemtsov “um crime cruel encomendado com o objetivo de pura provocação”.
Mas não se livra da suspeita.
Primeiro, porque o próprio Nemtsov afirmara, poucas semanas antes, recear que Pútin o quisesse liquidar.
Depois, e talvez sobretudo, porque se vive na Rússia, desde que Pútin regressou à presidência, em 2012, um ambiente de crescente tensão , com o presidente russo a considerar os opositores uma “quinta coluna” interna ao serviço dos inimigos externos do país.
Nemtsov, de todas as figuras da oposição liberal, era a voz que mais alto e mais frequentemente se ouvia, criticando frontalmente Pútin, acusando-o de envolvimento na corrupção e de fomentar a guerra no país vizinho.
Boris afirmara mesmo recentemente que iria em breve expor provas do envolvimento militar da Rússia na Ucrânia, que o Kremlin sempre negou.
Esses eram, aliás, os temas principais da manifestação que os liberais tinham convocado para domingo e que acabou por ser substituída por uma marcha em homenagem a Nemtsov.
A verdade, porém, é que, afastados da maioria dos media, os opositores liberais desfrutam hoje de fraco apoio (centrado sobretudo nos meios urbanos) e não constituem um perigo iminente para o poder instalado, a ponto de gerarem planos homicidas.
Os apoiantes do atual regime fazem mesmo notar que Pútin desfruta agora, segundo as pesquisas, de 86% de aprovação popular, pelo que não teria qualquer necessidade de recorrer a meios tão drásticos de eliminar os seus adversários.
ENTÃO, QUEM TERIA INTERESSE NO CRIME?
Há sempre a tese conspirativa dos serviços secretos estrangeiros, visando abalar o regime e desestabilizar o país, como insinuam alguns dos aliados de Pútin.
Os media estatais russos não descartam, também, uma possível ligação ao terrorismo islâmico, tendo em conta as posições frontais assumidas por Nemtsov no caso dos crimes contra o Charlie Hebdo.
Alguns políticos russos da oposição sugerem, entretanto, que outras forças podem estar na origem do crime: desde gente afastada do poder pelas denúncias de corrupção feitas por Nemtsov, até círculos mais obscuros do interior do próprio regime, que assim estariam criando dificuldades a Pútin, tanto interna como externamente.
EM BUSCA DO EQUILÍBRIO
Historicamente, a política russa tem oscilado entre duas grandes correntes – ocidentalizante (que procura aproximar o país dos padrões civilizacionais e políticos europeus, considerados genericamente superiores e em relação aos quais têm uma espécie de complexo de inferioridade) e eslavófila – que defende que a Rússia tem um padrão próprio de civilização que nada deve a qualquer outro e fomenta portanto o nacionalismo e a solidariedade pan-eslava.
Nemtsov foi vice primeiro-ministro de Ieltsin no anos 90, a época conturbada que se seguiu ao fim do regime comunista, em que reformas liberais radicais provocaram uma baixa drástica do nível de vida, não deixando por isso muitas saudades. Esses foram, também, os anos de maior aproximação ao Ocidente.
A subida de Pútin ao poder, no ano 2000, já se faz numa onda contrária a essa, mais eslavófila e desconfiada das intenções ocidentais, traços que só se têm vindo a acentuar nos últimos anos.
País de extremos, de oito ou oitenta, a Rússia tem dificuldade em encontrar soluções de equilíbrio entre esses dois pólos. Gorbachev, o último dirigente que o tentou, falhou redondamente: quis reformar para conservar, mas hesitou e acabou por perder o Estado e o poder.
Hoje, a Rússia parece defrontar-se de novo com esse dilema: entre Pútin e os seus aliados comunistas e nacionalistas, os eslavófilos, por um lado; os companheiros de Nemtsov, os ocidentalistas, por outro, será possível algum entendimento?
Até agora, parecia que não.
Muitos dos principais opositores receiam que assim vá continuar, temendo mesmo que este crime tenha aberto um período de ainda maior repressão e caça às bruxas. “Não temos medo” – foi o lema, bem significativo – do desfile de domingo.
Mas os seis tiros que ceifaram a vida a Boris Nemtsov repercutiram com fragor nas muralhas do Kremlin, causando profunda emoção em todo o país. O seu impacto pode, por isso, contribuir para um raro momento transversal de reflexão nacional em que os líderes de um lado e do outro se questionem sobre os perigos de continuar a aprofundar o fosso que os separa.
Se assim for, a morte prematura de Boris Nemtsov, seja quem for que a tenha provocado, não terá sido em vão.
Esperemos que as piores previsões não se confirmem.
DO SITE PORTUGAL DIGITAL