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dez 21 2016

TODO FEIO, O APELIDO E O CODINOME

MARCELO TORRES

Ao ler o noticiário sobre delações premiadas, essa briga de cachorro grande, e saber dos codinomes de homens corrompidos, fiz uma viagem ao tempo de criança, no Junco, aquele mundo coberto de apelidos.

Num dia remoto da infância, alguém bateu lá em casa. Um homem rouco chamava meu pai. Perguntei quem era, enquanto ia abrir a porta. De lá fora, a voz, na maior naturalidade do mundo: “É Todo Feio”.

E eu, que ainda não o conhecia, nem de vista nem de chapéu, só vi que era verdade porque ouvi límpida e claramente. E para não deixar dúvida, ele fez questão de especificar: “É João Todo Feio”.

Abri a porta rindo, e ri ainda mais quando o vi. Foi um riso moleque, mas também solidário. Uma criança via outra, mais velha, banguela. De camisa aberta, como de peito aberto para a vida, a cara amassada, o nariz achatado e os beiços e os ombros caídos.

Como não gostar de uma figura daquela? Como não simpatizar com aquele pobre diabo?

De tão humilde que era, não queria entrar. Coveiro nunca é uma visita desejada, ainda mais ele, que andava todo roto, aos trapos e farrapos. Insisti para que entrasse e sentasse. Após muito hesitar, enfim entrou, mas ficou em pé, ali à porta.

O velho Adauto era o administrador do cemitério. Naquela e em tantas vezes, eles falariam de velórios, e enterros, e caixões, covas, túmulos, esses assuntos de morte – e eu os ouvia sem que eles me vissem.

E assim que anunciei que um certo João Todo Feio o aguardava lá na sala, meu pai se contrariou, me passou um pequeno sermão-da-montanha, dizendo que bem-aventurados são aqueles que respeitam e se fazem respeitar.

Pouco adiantou eu dizer que tinha sido ele, o próprio visitante, quem assim se anunciou, com aquelas três palavras – João Todo Feio -, de forma espontânea. O velho Adauto nunca se referia a alguém em termos pejorativos.

Bem ou mal aventurado, cultivei amizade com João. Quando não era ele que aparecia lá em casa, era eu que achava um jeito de passar no cemitério e ouvir seus causos impagáveis, que me faziam morrer de rir.

Hoje, passadas duas décadas, João já em outra dimensão, e aqui se sabe, pelo noticiário, que um deputado denunciado por corrupção recebeu, além de propina, o apelido de Todo Feio – o que me fez lembrar do amigo coveiro.

Pelo que se lê, o deputado não teria reagido à denúncia em si. O que o revoltou foi o apelido, talvez por se achar uma beleza, tanto é que tratou logo de publicar nas redes sociais uma foto ao lado da filha bonita, loira, malhada.

Mas sua excelência, o deputado, está certo, ainda que por linhas tortuosas – o apelido é indevido, se aplicado a ele. Porque apelido é outra coisa, é quase um sobrenome. E o que ele ganhou, não resta dúvida, foi um codinome, que é um código secreto, usado para ocultar a identidade de alguém.

O coveiro, que não matou nem roubou, tinha um apelido. Já o deputado, que recebeu dinheiro, e muito dinheiro, ganhou um codinome. Além do mais – quem me lembra é o primo Antônio Torres – “comparado com o Todo Feio da Lava Jato, o nosso conterrâneo era um galã”. Era mesmo.

(marcelocronista@gmail.com)

 

 

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