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out 03 2024

ARTIGO: Doenças sociais oportunistas

  • Everardo Maciel

Médicos dizem que as infecções oportunistas são causadas por micro-organismos que se aproveitam de debilidades no sistema imunológico e podem se converter em epidemias em razão de imprudência ou negligência humanas. No último parágrafo de A Peste, obra-prima de Albert Camus, o personagem Rieux refletia: “o bacilo da peste não morre, nem desaparece, espera com paciência…e chega talvez o dia em que…a peste acorda os ratos e os manda morrer numa cidade feliz”.

Traçando um paralelo, perversidades sociais, a exemplo do crime organizado, corrupção e vícios de todos os gêneros, constituem uma ameaça permanente, sobretudo, em países com fragilidades institucionais e déficit civilizatório, como o Brasil. Esse entendimento é abonado por fatos recentes.

A Constituição de 1988 admitiu que a proposta orçamentária pudesse ser objeto de emenda para proceder à “correção de erros ou omissões”. Tese, em princípio, razoável.

Essa brecha legal serviu, todavia, de pretexto para, artificialmente, elevar a receita e financiar “emendas parlamentares”. De início, elas constituíam valores modestos; hoje representam quase ¼ das despesas discricionárias da União, desdobrando-se em uma larga coleção de alternativas (emendas individuais, de bancada, impositivas, secretas e as teratológicas emendas PIX), que acentuam as distorções no já disfuncional federalismo fiscal e são fonte poderosa de corrupção. Reverter essa iniquidade requer uma desproporcional energia política.

A incapacidade de enfrentar os crônicos desequilíbrios fiscais por meio do gasto pretexta a elaboração de fantasias, como teto de gastos e arcabouço fiscal, e a busca alucinada por novas fontes de receita, não raro esdrúxulas, como a anistia parcial em decisões tomadas no CARF pelo voto de qualidade, ou tóxicas, como a tributação de apostas esportivas (bets).
A febre das bets resultou em expressivo endividamento dos mais pobres, redução do consumo, ludopatia digital e estímulo à corrupção nas competições esportivas.
Até mesmo o bolsa família tem sido utilizado em apostas esportivas, em abusivo desvio de finalidade.
Não consigo entender a surpresa diante desse quadro, construído por uma combinação de maciça publicidade, amplo patrocínio dos clubes de futebol e legislação que ampara a atividade.
São pífias as medidas cogitadas para enfrentar a febre das bets, como o controle de licenças para exploração da atividade e a vedação do uso de recursos do bolsa família. Ingenuidade ou impotência? A febre não será debelada.
  •  Everardo Maciel é Consultor Tributário e ex-secretário da Receita Federal
Artigo publicado hoje (3.10.24) no Estadão, Blog do Noblat, Jornal do Commercio (Recife), Agência Estado e outros veículos.

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