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maio 12 2024

UMA MÃE CHEIA DE HISTÓRIAS (Renato Riella)

Mãe? Tive uma mãe finíssima – diferente de qualquer outra.

Cecília nunca se alterava – e nunca chorava. Dizia que suas lágrimas secaram. Quando vim para Brasília, há 50 anos, se despediu de mim na porta, rindo tristemente.

 

Tinha motivo para não mais chorar. Com 12 anos, cuidou durante dois anos da própria mãe, Firmina. Esta minha avó administrava muito bem, deitada numa casa, uma casa com cinco filhos, enquanto morria lentamente de tuberculose (na década de 40, ainda não havia qualquer remédio). Lembro que Castro Alves e Noel Rosa morreram assim, bem novos.

 

Sobre isso, Cecília me contou, falando baixinho como sempre: “Um dia, minha mãe pediu que eu levasse ela para tomar banho. Ajudei no que pude. Depois se deitou, pediu para vestir a roupa que mais gostava. E me disse que finalmente ia embora.  Horas depois morreu, segurando minha mão”.

 

Relato isso porque fui o primogênito de toda a família – de todos os primos e irmãos. Desde muito pequeno, me tornei confidente da minha mãe. Ela era muito nova, casada com um cara legal, mas 12 anos mais velho. Me falava das coisas mais pesadas, esquecendo que o interlocutor tinha apenas seis ou sete anos. Eu adorava – e anotava tudo na memória. Perguntava, provocava e pedia mais. Show!

 

Quase todo dia Cecília costurava. Na fase final da vida, fez roupas por encomenda para mulheres ricas e importantes de Salvador.

Enquanto ela trabalhava, muitas vezes eu fiquei deitado no chão frio (remédio contra o calor), de short e sem camisa, ouvindo clássicos como Caymmi, Luiz Gonzaga, o russo Tchaikovski e a sapoti Ângela Maria.

 

Cecília tinha fantástico gosto musical – acho que era a razão da vida dela. Meu avô Paulo foi sempre muito egoísta, mas Cecília conseguiu se aproximar dele porque passou a tocar bandolim muito bem (Paulo foi músico da Orquestra do Exército e tinha orgulho da filha artista).

 

Só vi Cecília chorar uma vez. Foi quando minha filha Nara estava grávida e a avó perguntou o nome da menina que ia nascer. Resposta: “Vai ser Cecília!” As lágrimas retidas durante décadas desabaram. Se sentiu imortalizada na família.

 

Desde os 17 anos, sempre tive forte vocação para repórter. Herdei isso da Cecília. Enquanto costurava, ela todo dia me relatava algum caso, que um dia vou botar em livro.

 

Contou que meu avô tinha uma pensão ao lado da estação ferroviária de Salvador. Os hóspedes eram homens do interior, todos com forte sotaque nordestino.

 

Cecília e os quatro irmãos mais novos, órfãos desde muito cedo, eram criados junto com a clientela da pousada.

De noite, um fazendeiro bem ignorante sentou-se na mesa, em frente de Cecília, admirando a adolescente branquinha e magrinha, estudante de ginásio.

 

Este homem nem tirou o chapéu quando se instalou, todo poderoso que se sentia. Pediu sopa. Ao receber o prato, exigiu quantidade maior. Cecília só ficou registrando, com faro de repórter e sem preconceito (repórter adora aberração).

 

Quando chegou o pratão de sopa, o hóspede gritou: “Quero farinha!”. Veio a farinheira e ele cobriu a sopa com forte camada. Depois olhou para Cecília e demonstrou alguma simpatia, ao tentar ensinar algo:

-“Menina, eu sou assim. Tudo o que vou comer tem de ter muita farinha. Por isso sou forte. Farinha dá sustança!”

 

Minha pequena mãezinha me contou este caso e riu feliz, intensamente, como nunca fazia. Pena não ter fotografado a sopa afarinhada! Ainda não havia celular.

 

Cecília depois definiu: “O homem era um autêntico tabaréu”.

Tabaréu é um tipo que só existe no Nordeste: forte e ignorante, sentindo-se sempre dono do mundo – e sem senso de ridículo.

 

As histórias de Cecília são inesquecíveis. De repente, variam do drama para o humor mais engraçado. Valem ouro.

Ótimo para marcar o Dia das Mães.

 

E quem quiser que conte outra!

 

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