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jan 27 2015

GRÉCIA: UM DIA BOM PARA A EUROPA

CARLOS FINO

De Atenas a Madri e Lisboa, de Roma e Paris a Dublin, ainda que com diferentes matizes, um sentimento de genuína alegria percorreu esta noite o velho continente, ao conhecerem-se os resultados das eleições parlamentares na Grécia, que deram ao Syriza uma vitória histórica.

Não pelo fato desta ter sido a primeira vez que um conjunto heterogêneo de grupos de esquerda conseguiu chegar ao poder pelo voto democrático num país da Europa, o que só por si é notável. Não se iludam os mais entusiastas dessa área política – o continente continua a não ser vermelho.

Mas pelo que a escolha da Grécia representa como protesto generalizado contra as políticas de austeridade que nos últimos anos têm sido seguidas, com os resultados sociais desastrosos que se conhecem. E talvez, sobretudo, pelo sentimento de libertação face ao esquema dominante que tem assegurado a rotatividade do poder sem que haja reais alternativas.

Desde a saída de Jacques Delors da presidência da Comissão Europeia, em 1995, que o projeto europeu se enredou, deixando-se mais e mais captar pelos interesses dos grandes grupos econômicos e financeiros, e perdendo progressivamente o sentido de solidariedade e igualdade entre velhas nações, que foi o sonho dos seus pais fundadores.

O neoliberalismo acabou por tomar conta das instituições e a nutrida burocracia de Bruxelas e Estrasburgo foi-se distanciando do comum dos mortais.

De caminho, perdeu-se igualmente a ideia da Europa vir a ter uma política externa própria. O alargamento a leste trouxe para dentro da União fortes sentimentos anti-russos e esta acabou por se alinhar de forma quase incondicional com a política externa dos EUA.

De 2008 para cá, tudo isso se acentuou: a resposta à crise econômico-financeira, centrada exclusivamente em políticas restritivas, provocou sofrimentos de toda a ordem e a palavra solidariedade praticamente desapareceu do léxico dos políticos europeus, criando uma sensação de indiferença perante as dificuldades das populações.

Com a agravante – nos casos grego, português e irlandês – de visitas regulares de uma “troika” de funcionários dos credores – FMI, BCE e UE – que praticamente se substituiu aos governos nacionais, acrescentando humilhação à dependência.

O sentimento de entreajuda, que devia presidir as soluções, desapareceu, instaurando-se o cada um por si, com os grandes velando para que os mais débeis não possam fugir ao pagamento das dívidas, impondo-lhes um esquema leonino inflexível, num calvário sem fim, já que as dívidas, em vez de diminuírem, se agravam e a produção cai.

Instaurou-se assim um fosso  entre ricos e pobres, norte e sul, como nunca antes se conhecera em toda a história da construção europeia.

Na 25ª hora, já com a deflação à porta e a perspectiva de estagnação econômica, o Banco Central Europeu anunciou finalmente que irá injetar mais liquidez no sistema, tentando relançar o crédito e a procura.

Mas o resultado ainda é incerto e o que  continua a marcar a realidade social europeia, sobretudo no sul, são a alta dos impostos, a estagnação ou o corte dos salários e pensões, as taxas astronômicas do desemprego, o fim dos subsídios, e os cortes generalizados nos serviços sociais, da educação à saúde, passando pelos transportes públicos.

Tudo isso num ambiente ideológico que tenta convencer as pessoas de que se portaram mal e gastaram demais, trabalham mal, não merecem o que ganham e agora não têm outra alternativa que não seja aguentar.

Foi a tudo isto que os gregos disseram agora um rotundo NÃO, fazendo por momentos renascer a esperança de que uma outra política é possível.

Claro que não vai ser fácil. Os credores e os governos que os representam vão opor-se com unhas e dentes à ideia de um corte substancial na dívida, como quer o Syriza. Mas a saída da Grécia do Euro, embora teoricamente admitida pela Alemanha, seria um problema ainda pior.

Os mais conservadores vieram logo alertar para o irrealismo dos objetivos do Syriza. Talvez. Mas o novo governo grego tem do seu lado, paradoxalmente, os efeitos desastrosos que o agravamento da situação social e política certamente iria provocar no conjunto da zona Euro e de toda a UE.

Por isso é razoável esperar que haja algum espaço para negociação e compromisso.

Seja como for, o voto grego já mudou o clima político. A esperança renasceu e com ela, entrevê-se de novo a possibilidade de a Europa se poder um dia libertar dos que a raptaram  e assim resgatar o velho sonho de uma união de nações iguais e solidárias, construindo um espaço de prosperidade e de paz.

Se a construção desse ideal só se pode fazer com o envolvimento emotivo das nações do continente, então ontem foi um dia bom para a Europa.

* Carlos Fino, jornalista português, foi enviado especial e correspondente internacional da RTP – televisão pública portuguesa – em Moscou, Bruxelas e Washington, e correspondente de guerra em diversos conflitos armados na ex-URSS, Afeganistão,  Albânia, Oriente Médio e Iraque.  Foi conselheiro de imprensa da Embaixada de Portugal em Brasília (2004/2012), cidade onde atualmente reside.

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