ROSANA TONETTI (SITE PORTUGAL DIGITAL)
Lançado em outubro do ano passado e indicado ao Oscar, Relatos Selvagens é uma obra de ficção, mas com incríveis semelhanças que extrapolam os limites de situações da vida real.
O filme do diretor argentino Damián Szifron, pontuado por seis histórias num roteiro trágicômico, percorre uma realidade cruel e imprevisível. De um momento para o outro, acontecimentos até então rotineiros e civilizados culminam em barbárie inimagináveis.
Deixei a sala de projeção com inveja do diretor, roteiristas e produtores. Sempre admirei o trabalho desta turma. E a obra é impecável. Tanto que ainda continua em cartaz nos cinemas brasileiros.
O longa começa com um episódio que nos remete à triste similaridade com o voo fatal da Germanwings, na semana passada, em que deliberadamente o copiloto aciona os comandos de descida do Airbus e o joga contra os Alpes franceses, matando os 150 passageiros.
No filme, o comissário de bordo reúne todos os desafetos da sua vida, desde uma ex-namorada até colegas de classe, em um mesmo avião. Na sequência, ele faz o piloto refém derrubar o avião.
Sinta-se orgulhoso e politicamente correto quem nunca pensou em alguma vingancinha com pitadas bestiais. Algo do tipo como esvaziar os pneus do carro daquele sujeito folgado que rouba a vaga no estacionamento abarrotado e que você pacientemente aguarda parado há quase meia hora.
Pior ainda quando o cara invade os espaços destinados a deficientes ou idosos. A raiva triplica.
E que vontade não dá de esganar aquela perua que se faz de sonsa e fura a fila no cinema ou no banco na maior cara de pau. E jura por todos os santos e tudo o que há de mais sagrado que você nunca considerou em ir à forra com aquele colega de trabalho que conspirou ou te prejudicou profissionalmente?
Também vai negar que jamais passou pela cabeça dar o troco naquele vizinho que dá altas festas madrugada adentro, regadas a música no último volume e com convidados bêbados vomitando na sua porta e azucrinando o sono de toda a família?
Na verdade, a gente só não faz porque o bom senso reprime. Mas pensar é livre e, por ora, ainda não é tributado.
Certa vez, um(a) motorista bloqueou a saída do meu carro ao estacionar em fila dupla. E ainda puxou o freio de mão. Tive ímpetos de exaurir todos os pneus e estepe da execrável criatura. Mas uma amiga, que estava de carona comigo, teve a magnífica ideia de pichar o carro, de um branco total, com batom.
Gastamos dois tubos do cosmético, bem vermelhos, deixando recados desaforados para o(a) irresponsável, que certamente teve que zarpar dali para um lava-jato. Quem passava pelo local no momento, aplaudiu e incentivou o ato tresloucado das duas insanas.
Dias desses, um amigo me disse que estudava um meio de atear fogo no Congresso Nacional. “Aquilo lá num faz e nem tem quem preste pra nada. Só tem jeito incinerando”. Argumentei que a gasolina está muito cara e que a empreitada pediria milhares de litros.
Ele respondeu: “Já tenho tudo planejado. Vou desviar alguns dutos em direção do Congresso. Pelo menos usaremos nosso petróleo em benefício do povo”.
Imediatamente intercedi, lembrando-o que tenho amigos bons e honestos que trabalham lá e que não gostaria de perde-los. E também reforcei que há parlamentares sérios. “Eu dou um jeito de tirar de Sodoma e Gomorra os poucos que merecem se safar.”
Dias desses ele me procurou e disse que tinha mudado de ideia. Decidiu que é melhor explodir – porque é mais rápido e mais simples – todo o quadrilátero nas proximidades do Congresso, assim como o personagem de Ricardo Darin faz no filme com o sistema corrupto de trânsito. Eu me calei e estou fugindo dele tem três semanas. Afinal, tem doido demais no Brasil.
Rosana Tonetti, brasileira, de São Paulo, é jornalista e reside em Brasília. Trabalhou em jornais como Estado de S.Paulo, Correio Braziliense e revistas da Editora Abril. Participou de vários projetos de comunicação corporativa.