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maio 03 2024

Artigo: Transação tributária como política de Estado

*Luís Paulo Guedes de Albuquerque Ribeiro

*Charles Dickens Ázara Amaral

A transação tributária é prevista desde a edição da redação original do Código Tributário Nacional, em 1966, como forma de extinção do crédito tributário, conforme previsão no artigo 156, inciso III.

Em que pese o instituto estivesse previsto há mais de 50 anos, somente em 2019 foi regulamentado, com o advento da Medida Provisória nº 899/2019, posteriormente convertida na Lei nº 13.988/2020. No âmbito da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a regulamentação se deu pela Portaria 6.757/2022.

O modelo brasileiro é baseado no instituto estadunidense chamado Offer in Compromise, praticado pelo Internal Revenue Service. À época, a visão do Poder Executivo era de que o perdão de dívidas tributárias em programas de parcelamentos especiais, como os diversos Refis, deveria evoluir, tendo como referência a excelência atingida pelo modelo norte-americano das transações, que visa a formar acordos com base em critérios subjetivos relacionados ao devedor[1].

No Brasil, a implantação da transação tributária sofreu muita resistência, principalmente pelo fato de permitir que funcionários públicos responsáveis por arrecadar tributos pudessem firmar acordos com contribuintes, o que poderia gerar contrariedade a outros valores instituídos na legislação e na doutrina, quais sejam, a igualdade perante a lei e a indisponibilidade do interesse público (Neto, 2021).

Diversos programas de recuperação fiscais (Refis) na esfera federal oportunizaram que o contribuinte realizasse parcelamento de suas dívidas, sendo concedidos descontos sobre as multas, juros de mora e encargos legais, e possibilitando o pagamento em prazos alongados.

Contudo, se por um lado esses programas permitiam a recomposição da saúde financeira estatal, por outro, abriam margem a uma enorme injustiça fiscal, prejudicavam a livre concorrência e principalmente o contribuinte adimplente.

Uma vez perdoadas as sanções por atraso no pagamento, o contribuinte que está em dia com suas obrigações deixa de aplicar dinheiro em suas atividades para pagamento de obrigações com o Estado. Já outros podem optar por investir esse dinheiro, obter seus retornos e, futuramente, quitar sua dívida estatal com perdão de multas, juros de mora e encargos legais.

É sabido que nem todo inadimplemento ocorre pelas razões elencadas no exemplo acima. Muitos deixam de pagar seus débitos federais por motivos diversos. As dificuldades financeiras enfrentadas pelos brasileiros e empresas brasileiras nem sempre permitem o adimplemento tempestivo de suas obrigações.

Nesse contexto, surge a transação tributária, com o intuito de diferenciar o devedor que pode pagar seus débitos em dia, mas não o faz de maneira voluntária, e o devedor que passa por algum momento turbulento em suas finanças.

A principal diferença entre a transação tributária e o Refis é que aquela leva em conta a capacidade de pagamento do contribuinte, para poder conceder descontos e prazos para quem realmente precisa, enquanto o Refis concede tais vantagens a qualquer pessoa que delas necessite ou não.

Outro fator importante é que o passivo tributário passou a contar com menos interferência do Poder Legislativo, que passou a ser administrado pelos órgãos fazendários, diferentemente dos programas de Refis, que ocorriam mediante lei de tempos em tempos e por curto prazo.

Atualmente os programas de transação estão abertos desde a edição da Medida Provisória nº 899/2019, e a tendência é que assim permaneçam por muito tempo, sendo cada acordo realizado de acordo com a capacidade de pagamento do contribuinte.

O sucesso da transação tributária é inegável: segundo o Relatório PGFN em números de 2023 [2], somente em 2022, dos R$ 39,1 bilhões recuperados pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, R$ 14,1 bilhões são oriundos de transações tributárias.

No âmbito das negociações de transações tributárias, a capacidade de pagamento do contribuinte é aferida em quatro níveis, de A a D, sendo atribuída a categoria A aos créditos de fácil recuperação, e a categoria D para os tidos como irrecuperáveis.

Para cada categoria há um nível de descontos, variável proporcionalmente à recuperabilidade dos créditos, de modo que quanto maior a dificuldade de recuperação, maiores serão dos descontos e condições para pagamento, e vice-versa.

A aferição da capacidade de pagamento se dá de maneira objetiva, sendo utilizada uma fórmula que leva em conta diversas variáveis como faturamento, patrimônio, renda etc., a partir do cruzamento de informações das declarações fiscais do contribuinte.

Obviamente que é uma capacidade presumida e admite prova em contrário, pois a fórmula não reflete necessariamente a real situação financeira. Outras variáveis igualmente importantes ficam de fora da fórmula: margem de lucro, valor da folha de pagamento e até mesmo se o patrimônio foi adquirido à vista, parcelado ou por permuta.

Nos casos em que a capacidade de pagamento presumida não se assemelha à realidade financeira do contribuinte, há o procedimento de revisão de capacidade de pagamento, no qual ele apresenta documentos a fim de comprovar a real situação.

Como mostrado anteriormente, a aferição da capacidade de pagamento visa a conferir tratamento isonômico aos contribuintes, de modo a conceder benesses no pagamento de dívidas apenas àqueles que necessitem. Diferentemente do Refis, que tem fins meramente arrecadatórios, a transação tributária representa verdadeira materialização do princípio da isonomia entre os contribuintes.

A ideia pode ser resumida em conceder benesses para regularização fiscal somente a quem delas necessita.

Sob o prisma empresarial, permite justiça concorrencial, evitando que empresas lucrem contraindo dívidas, utilizando o Estado como verdadeiro financiador de suas atividades a juros baixíssimos ou inexistentes, em detrimento de outras, que honram tempestivamente com seus pagamentos.

Assim, a transação tributária é uma verdadeira política de Estado, pois torna mais isonômicas as relações comerciais e concorrenciais, promove a justiça tributária, e, em conjunto, o crescimento econômico do País.

A transação tributária é instituto que se traduz enorme impacto social e econômico, notadamente regularização fiscal, arrecadação para o financiamento da atividade estatal, a preservação do equilíbrio concorrencial, desenvolvimento econômico e justiça tributária.

Da sua edição até o presente momento, revelou-se como a evolução necessária dos parcelamentos especiais até então existentes, principalmente pelo fato de conceder vantagens não de forma ampla e irrestrita, mas sim de possibilitar o seu acesso a quem de fato delas necessita.

Os frutos dessa evolução são colhidos pela sociedade e, até agora, mostram que esse modelo deve perdurar, mas que deve sempre ser aperfeiçoado.

[1] NETO, Clóvis Monteiro Ferreira da Silva. A transação tributária nos Estados Unidos: estrutura normativa e análise econômica. In: FILHO, Cláudio Xavier Seefelder (coord.). Comentários sobre transação tributária: À luz da Lei 13.988/20 e outras alternativas de extinção do passivo tributário. 1. ed. São Paulo: Thompson Reuters Brasil, 2021. p. 103-104.

[2] Disponível em: <https://www.gov.br/pgfn/pt-br/acesso-a-informacao/institucional/pgfn-em-numeros/pgfn-em-numeros-2023-versao-20042023.pdf>. Acesso em: 8 abr. 2024.

* Luís Paulo Guedes de Albuquerque Ribeiro – advogado, sócio do Ribeiro e Guedes Advogados Associados, especialista em Direito Tributário, Direito Público e Direito Notarial e Registral e vice-Presidente da Câmara de Tributação e Finanças Públicas da Fecomércio/DF.

*Charles Dickens Ázara Amaral –  advogado, sócio do Charles Dickens Sociedade Individual de Advocacia, especialista em Direito Tributário, Direito Societário e Processo Civil e presidente da Câmara de Tributação e Finanças Públicas da Fecomércio.

Publicado em Jota e Conjur

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