CHICO DIAS (Jornalista brasiliense)
Curiosidade: Simon Bolívar biografado por Karl Marx
Por um capricho a história, em 1857, Karl Marx foi contratado pelo diretor do jornal New York Daily Tribune para escrever alguns verbetes para uma tal New American Cyclopaedia. Entre suas atribuições, ele foi encarregado de resumir a vida de Bolívar, que tinha morrido com tuberculose 27 anos antes. Inicia, assim, o texto de Marx:
Bolívar y Ponte, Simon, o “libertador” da Colômbia, nasceu em Caracas, em 24 de julho de 1783, e faleceu em San Pedro, perto de Santa Marta, em 17 de dezembro de 1830. Era filho de uma das famílias mantuanas que, no período da supremacia espanhola, constituíam a nobreza criolla da Venezuela.
O verbete, então, segue contando as aventuras militares do comandante, incluindo traições a seus companheiros, como Francisco de Miranda, que encarregara Bolívar de tomar conta da fortaleza de Porto Cabello:
Quando os prisioneiros de guerra espanhóis, que Miranda costumava confinar na fortaleza de Porto Cabello, conseguiram dominar de surpresa os guardas e tomar a cidadela, Bolívar – apesar de os prisioneiros estarem desarmados, ao passo que ele dispunha de uma guarnição numerosa e uma grande quantidade de munição – fugiu precipitadamente durante a noite com oito de seus oficiais, sem informar seus próprios soldados. Ao tomar conhecimento da fuga de seu comandante, a guarnição retirou-se ordeiramente do local, que foi ocupado de imediato pelos espanhóis.
É a primeira narração de Marx de uma fuga covarde de Bolívar. Ao todo, há outras cinco. Outra é esta aqui, quando Marx relata o depoimento de uma testemunha:
Quando os combatentes [espanhóis] dispersaram a guarda avançada de Bolívar, segundo o registro de uma testemunha ocular, este perdeu toda a presença de espírito, não disse palavra, fez meia-volta no ato com o cavalo, fugiu a toda velocidade para Ocumare, passou pelo vilarejo num galope desabalado, chegou à baía próxima, apeou de um salto, entrou num bote e embarcou no Diana, deixando todos os seus companheiros privados de qualquer auxílio.
Para Marx, Bolívar também era despótico e egocêntrico. A ideia fixa do venezuelano era criar uma única República, que seria resultante da independência de várias colônias: “Eu desejo, mais do que qualquer outro, ver formar-se na América a maior nação do mundo, menos por sua extensão e riquezas do que pela liberdade e glória”, escreveu ele em uma carta na Jamaica, em 1815. Em 1826, com a Espanha fora da região, o Libertador organizou um congresso no Panamá com representantes de vários países de toda a América do Sul. Convidou até mesmo diplomatas do Brasil. Segundo o pensador alemão:
O que Bolívar realmente almejava era erigir toda a América do Sul como uma única república federativa, tendo nele próprio seu ditador. Enquanto, dessa maneira, dava plena vazão a seus sonhos de ligar meio mundo a seu nome, o poder efetivo lhe escapou das mãos.
No ano seguinte, em 1827, Bolívar voltou à Venezuela após cinco anos lutando contra soldados que defendiam a Espanha na Colômbia, no Peru e na Bolívia. Os interesses dos espanhóis eram guarnecidos por apenas mil soldados, a maioria deles americanos doentes e mal equipados. Para ajudá-los, a Espanha enviou sua maior expedição militar para a colônia em três séculos de dominação e reforços anuais,! “Mas o tamanho excedia a moral, e uma vez na América os números eram reduzidos pela morte ou deserção. Os soldados espanhóis eram conscritos (alistados obrigatoriamente), não voluntários. A Guerra Colonial não era uma causal popular na Espanha, e nem os soldados, nem os oficiais queriam arriscar suas vidas na América, muito menos na Venezuela, onde o ambiente de luta era notoriamente cruel”, escreveu John Lynch.
Para confrontá-los, Bolívar e seus parceiros criollos contaram com a ajuda dos ingleses. Após as guerras com Napoleão, havia milhares de soldados desempregados ou com baixos salários na Grã-Bretanha. Ansiavam tanto por um convite para lutar na América do Sul que treinavam voluntariamente durante o dia em Londres. Ao chegar à Venezuela, passaram a ser conhecidos como bons marchadores, pois deixavam os soldados locais sempre para trás nos grandes deslocamentos de tropas. A Batalha de Boyacá, ocorrido quando Bolívar entrou na Colômbia e a qual o libertador considerava “minha mais completa vitória”, foi vencida graças aos ingleses, que também venderam rifles, pistolas e espadas aos republicanos.
No retorno à Venezuela, quem recebeu Bolívar foi o general José Antonio Páez, que ajudara a debandar as tropas da metrópole e, três anos depois, se tornaria presidente da Venezuela. Em sua aula, o professor Marx nos conta então como se dá a entrada apoteótica do Libertador em Caracas:
De pé sobre um carro triunfal, puxado por 12 jovens vestidas de branco e enfeitadas com as cores nacionais, todas escolhidas entre as melhores famílias de Caracas, Bolívar, com a cabeça descoberta e uniforme de gala, agitando um pequeno bastão, foi conduzido por cerca de meia hora, desde a entrada da cidade até sua residência. Proclamando-se “Diretor e Libertador das Províncias Ocidentais da Venezuela”, criou a “Ordem do Libertador”, formou uma tropa de elite que denominou de sua guarda pessoal e se cercou da pompa própria de uma corte. Entretanto, como a maioria de seus compatriotas, ele era avesso a qualquer esforço prolongado, e sua ditadura não tardou a degenerar numa anarquia militar, na qual os assuntos mais importantes eram deixados nas mãos de favoritos, que arruinavam as finanças públicas e depois recorriam a meios odiosos para reorganizá-las.
Ao ser questionado se não teria exagerado na crítica ao descrever uma pessoa com tantas conquistas, Marx respondeu o seguinte em uma carta para o camarada Friedch Engels:
“Seria ultrapassar os limites querer apresentar como Napoleão I o mais covarde, brutal e miserável dos canalhas.”