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dez 16 2018

CARREGO HÁ 60 ANOS UM FORTE REMORSO…CULPA DE MARIA MOREIRA

RENATO RIELLA

Na mais tórrida região baiana, existe uma cidade chamada Rio Real, que antes foi Barracão. É o sertão do sertão!

Há cerca de 60 anos, na hora fervente do almoço, adquiri um remorso do qual nunca me libertei.

Garoto inocente, estava andando na rua de barro da cidadezinha, ao lado da minha bisavó Maria Moreira, mulher poderosa e autoritária, que teve 20 filhos, quase todos homens.

Nos meus oito/nove anos, eu era um menino branco bem cuidado, tímido, que morava em Salvador. Todo bonitinho! Calçava alpercata comprada em loja. E vestia short e camisa produzidos pela melhor costureira da Bahia, minha mãe Cecília.

Na terra quente, em nossa direção, vinha um moleque descalço de dez anos, bem magro, preto/mulato, com short velho e sem camisa. Levava feliz uma bonita manga na mão – devia ter pegado em alguma roça próxima.

A assustadora Maria Moreira falou forte: “Menino, passe esta manga para o neto do meu filho José!”

E assim foi feito.

Fiquei chocado, mas não resisti. Hoje, é como se ainda carregasse nas ruas estreitas de Barracão a eterna manga. Sempre tive vontade de procurar o garoto do sertão para indenizá-lo pelo confisco. Mas como? Rezo por ele tentando sufocar o remorso.

 

ASSUSTADORA

Carrego no DNA o sangue desta mulher muito forte. Quando convivemos, ela tinha cerca de 70 anos, mas mandava na cidade.

 

Muitas décadas antes, Maria Moreira havia perdido o primogênito José Moreira, pai do meu pai.

Este meu avô morreu aos 24 anos – e já era rico. Vivia montado a cavalo de cidade em cidade, comprando couro, sisal e outros produtos do Nordeste, que exportava pelo porto de Salvador.

Um dia, no auge da força, o bem sucedido José Moreira voltou para Barracão com dores na barriga. Faleceu em uma semana, de diverticulite. Muitos quiseram levá-lo de trem para Salvador, mas o autoritarismo de Maria Moreira condenou o jovem à cova.

Pensam que ela esmoreceu? Sofreu muito. Mas com cerca de 40 anos pariu o vigésimo filho, a quem deu o nome de José, o falecido. A baiana duríssima desafiou Deus.

 

EXTRAVAGANTE

Convivi com Maria Moreira somente dois dias da minha vida, há seis décadas. Mas ela permanece viva nas minhas lembranças. Figura rara!

Tinha cerca de 1m50, bem branca. Descendente de portugueses, meio cheinha, sem ser gorda. Andava forte, cabeça erguida, com sandália baixa de couro. Ninguém via essa mulher como velha.

Vestia uma saia rodada, de cor, meio cigana. E uma blusa cavada, de pano bem fino para suportar o calor de assustar tuaregue.  Braços totalmente descobertos e seios grandes levemente delineados. Uma figura cinematográfica, vaidosa e segura de si.

Numa espécie de cinto, pendurava mais de 20 chaves, dos ambientes diversos que administrava. Não confiava em ninguém.

Caminhamos até um galpão. Lá chegando, usou uma das chaves e entramos num ambiente horrível. Dentro do prédio, havia mais de 200 coelhos amontoados.

Andei no meio deles, assustado. Vi finalmente a guerreira dar uma boa risada, verdadeira gargalhada. Gostou da minha surpresa. Nunca esqueci o fedor daquele amontoado de bichinhos calados.

Todos os seres humanos tinham medo de Maria Moreira – menos eu, o neto do primogênito José. Podia pedir e exigir qualquer coisa. Bolos, doces, brinquedos da roça, sucos, etc. Menos carinho, beijinho, mão para segurar, etc.

O marido dela, meu bisavô, era chamado apenas de Seu Moreira. Mais envelhecido, careca, tinha pequenas feridas na cabeça.

Alguém comentou: “O que é isto na cabeça de Seu Moreira?”

Maria Moreira respondeu: “É porque ele vive nas casas baixinhas das quengas e bate a cabeça no teto”.

Noutra hora, sem a mulher feroz por perto, outra pessoa perguntou a Seu Moreira:

-Porque o senhor suporta tanto tempo as brabezas de Maria Moreira?

Resposta bem humorada dele, que era bon vivant total:

-Preciso suportar. Se não, quando chegar lá em cima, São Pedro perguntará onde está minha cruz. Minha cruz é ela!

A nossa origem nos dirige. Todos vocês que tentam me provocar  fiquem sabendo: sou descendente direto da sertaneja Maria Moreira.

Sai de baixo que lá vem a zorra!

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