«

»

abr 02 2014

Cota para negros em concurso é uma aberração, mas não há outra saída

RENATO RIELLA

Reservar 20% das vagas em concursos públicos para candidatos que se dizem negros é um absurdo, uma aberração técnica. No entanto, a injustiça social está tão enraizada no Brasil, que até isso se torna aceitável.

O certo é que a Câmara Federal aprovou projeto enviado pela presidente Dilma Rousseff que estabelece essa regra anormal em concursos públicos da administração direta e indireta da União. Breve a proposta passa pelo Senado e será implantada em todo o País.

A medida abrange os cargos efetivos e empregos públicos, inclusive em autarquias, fundações públicas, empresas públicas e sociedades de economia mista controladas pela União. Será feito nos moldes já praticados em relação aos deficientes.

Quando a Universidade de Brasília foi pioneira, estabelecendo cotas para negros, fui filosoficamente contra. Até hoje, convivo com respeitáveis professores universitários que vivem contrariados com essa prática, que gera distorções internas na UnB.

Para começar, a pessoa tem o direito de se declarar negra. Tivemos há alguns anos a situação absurda em que dois irmãos, visivelmente de cor branca, assumiram posturas diferentes: um se beneficiou da cota, dizendo-se descendente de negro; e o outro, não.

Distorções à parte, o Brasil precisa mesmo continuar discutindo essa questão da marginalização dos negros. Tivemos todo o século XX para corrigir isso e nada fizemos.

Mudei de postura nas últimas semanas, passando a admitir as cotas, depois que vi uma comparação chocante em duas fotos de Facebook. Numa delas, os formandos de Medicina da Universidade Federal da Bahia eram todos praticamente brancos. Na outra, candidatos à vaga de lixeiro no Rio de Janeiro eram todos pretos.

Na recente greve dos lixeiros cariocas, vimos que essa situação persiste. Branco não se apresenta para recolher lixo nos bairros, porque certamente encontra portas abertas em outros locais mais cheirosos.

NÍVEL SUPERIOR PARA
SOLDADO DA PM É ERRO

Em Brasília, há alguns anos combato uma aberração, que é a exigência de diploma de nível superior nos concursos para a escolha de soldados da Polícia Militar.

Com isso, a PM virou porta de entrada de uma elite branca. Os filhinhos-do-papai ocupam vagas na corporação, em muitos casos à espera de aprovação em algum outro concurso de nível universitário.

Na semana passada, os jornais locais estamparam fotos de 900 soldados que foram empossados pelo governador Agnelo Queiroz, começando a trabalhar na PM. De forma chocante, vi que praticamente não há negros nesse grupo.

A Polícia Militar fechou as suas portas para a população pobre, que abraçaria essa função com mais necessidade e mais dedicação. Diploma para soldado, tecnicamente, é uma vergonha.

DISCRIMINAÇÃO RACIAL
NA BAHIA É PIOR AINDA

O Brasil é ainda hoje o mesmo país injusto da minha infância, há mais de 50 anos. Estudei no Colégio Maristas de Salvador na década de 60. Eram mais de mil alunos do ginásio e do chamado curso colegial.

Lembro com remorso que, entre as centenas de colegas com quem convivi durante sete anos, havia apenas um negro autêntico, filho (de criação) de um rico fazendeiro, o qual era chamado por todos nós de Pelé – embora jogasse bola muito mal.

A discriminação existente no Brasil é muito mais chocante quando acontece na Bahia, onde se imagina que mais de 70% da população seja de origem africana (pretos, mesmo, autênticos).

Assim, revejo hoje minhas posições anteriores. Digo que o regime de cota é horrível, injusto, discriminatório, tecnicamente errado – mas necessário.

O Brasil precisa de tratamento de choque para seus males sociais.

2 comentários

  1. PLAUTO

    riella,

    o racismo brasileiro opera sempre de forma difusa e contraditória. você afirma categoricamente que pobreza tem cor e é negra. e ao mesmo tempo tem resistência a uma política provisória de inclusão. GOSTARIA QUE VOCÊ NÃO ESQUECESSE QUE DOS 524 ANOS DO NOSSO PAIS 350 ANOS FORAM DE AÇOITE NO LOMBO DOS NEGROS, OU SEJA, 70% DE IMOBILISMO PATROCINADO PELO ESTADO QUE TARDIAMENTE FORJA HOJE A NECESSIDADE DE POLÍTICAS PÚBLICAS DE INCLUSÃO ” HORRÍVEL, INJUSTA E DISCRIMINATÓRIA” COMO VOCÊ AFIRMA NO SEU TEXTO. o mais intrigante é que você não apresenta nenhuma sugestão viável e imediatista para incluir essa massa negra. é importante frisar que os negros querem o resgate da sua cidadania hoje, não daqui a mais 126 anos, onde não foi apresentado ATÉ RECENTEMENTE nenhum instrumento para tirar os negros da imobilidade. INVESTIR NO ENSINO DE BASE? PERFEITO E CONCORDO. MAS SE TRATANDO DE BRASIL E DOS GOVERNANTES QUE TEMOS, OUTROS SÉCULOS DE DESCASO AINDA VIRÃO. O VENENO DA ESCRAVIDÃO AINDA CIRCULA NO SANGUE DOS NEGROS, SE O ANTÍDOTO NÃO FOR APLICADO AGORA NEGROS CONTINUARÃO MORRENDO, O PAÍS PERDERÁ TALENTOS E O SILÊNCIO CÚMPLICE CONTINUARÁ CORRENDO SOLTO. RIELLA, QUANDO SENTIMOS FORTE DORES DE CABEÇA O HOSPITAL MAIS PRÓXIMO DA NOSSA CASA SE TORNA SEMPRE UMA BENÇÃO. O PROBLEMA É QUE PARA OS NEGROS OS HOSPITAIS AINDA ESTÃO NA PLANTA BAIXA. O GOVERNO, COM A APROVAÇÃO DAS COTAS, APENAS COMEÇOU ERIGIR OS PILARES DAS OBRAS QUE SUSTENTARÃO UM PAÍS MAIS DEMOCRÁTICO. FICO FELIZ POR VOCÊ TER, MESMO QUE TARDIAMENTE, ENXERGADO O ÓBVIO: QUE OS NEGROS SÃO MASSACRADOS DIUTURNAMENTE NO BRASIL. TALVEZ OS ORIXÁS BAIANOS TENHAM TOCADO AINDA MAIS NA SUA TÃO CONHECIDA SERENIDADE.

    1. Riella

      Obrigado, Plauto.
      Morei em Salvador até os 23 anos de idade.
      Jogava bola na Amaralina em times onde só havia de “branco” eu e meu irmão Humberto – que éramos praticamente mulatos de tanto sol.
      Sinceramente, quando estava na Bahia, não cheguei a sentir o que se chama de racismo, nem discriminação, de tão integrado que minha vida era com a dos negros, que são maioria por lá.
      Tempos depois, em Brasília, fui constatando tudo o que acontece e que existe inclusive na Bahia.
      Na verdade, hoje sei que a integração social natural, sem indução, pode demorar 500 anos.
      Assim, essas soluções artificiais são necessárias.

      Plauto,
      se eu fosse governador, deslocaria para as zonas mais pobres as melhores escolas, dando grandes incentivos aos professores e levando meios avançados para o desenvolvimento.
      Mas não entrei em partido e não vejo entre os candidatos alguém com esta visão.
      Assim, vamos nos contentando com o remendo das cotas.
      Abraços,
      R.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode usar estas tags e atributos HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>

*