«

»

jan 06 2018

História baiana: SAUDADE DE MAÇU, UMA ESCRAVA DE VERDADE QUE MOROU NA MINHA CASA

RENATO RIELLA

No próximo fim de semana, meu filho Gil, um anjo de 42 anos, vai fazer na Bahia o encontro dos Riella – filhos, netos e bisnetos de Agenor e Cecília.

Entre muitos registros, lembraremos de Maçu, uma escrava de verdade, que viveu suas últimas décadas na nossa casa da Pituba, em Salvador, plenamente integrada à família. Pena que só foi conhecida pelos mais velhos.

Morreu na década de 70, com mais de cem anos, mas sempre se recusou a falar daqueles tempos tristes. Conversava sobre qualquer coisa, menos escravidão.

Nós não podíamos imaginar a idade dela. A gente acabava se baseando na sabedoria do pai Agenor, que costumava dizer: “Negro quando pinta, três vezes pinta”. Este ditado vale também para japonês e índio, que só costumavam ter cabelos brancos perto dos 100 anos.

CRIOU E PROTEGEU CINCO CRIANÇAS BRANCAS

Maçu criou minha mãe Cecília, que ficou órfa aos 12 anos e foi muito abandonada pelo pai. A preta cozinheira era corajosa e defendia cinco pequeninos brancos sem mãe. Botou o apelido de Cina na minha mãe, a quem só chamava assim.

Quando fomos morar numa ampla casa na Pituba, meu pai reservou um bom aposento para Maçu, que na verdade se chamava Marcelina. Ela já devia ter perto dos 80 anos e não fazia mais nenhum trabalho, embora sempre estivesse praticamente lúcida – até quando morreu.

Adorava meu irmão Humberto, o menino mais danado do mundo, e lidava com nossos amigos adolescentes de igual para igual. Sabia o nome deles. E todos chamavam ela de Maçu, com a maior intimidade e com muitas brincadeiras. Coisa de baiano, uma raça que tem coração de dendê.

ASSUSTADA COM A TELEVISÃO

O choque cultural da Maçu era motivo de muitas risadas. Naquela época, a televisão na Bahia estava começando. Quando o locutor do Jornal Nacional dava boa-noite, Maçu respondia com firmeza: “Boa-noite, senhor”. Risada geral!

Muitas vezes, saía todo mundo da sala e deixava a ex-escrava sentada na sua cadeira de lona, vendo TV, atividade que adorava. De repente, ela gritava: “Ei, pessoal, não me deixe aqui sozinha na sala com este homem, não!”

Costumava também xingar os vilões das novelas. (Malvado, bicho rúim!”) E às vezes fugia para o quarto, para não ver as cenas mais fortes.

Uma das mais incríveis de Maçu foi quando Vinícius de Moraes fez uma música em que “xingava em nagô”, língua africana. Um dia, alguém cantou na televisão: “Na tonga da mironga, do kabuletê, na tonga da miroooooonga, do kabuletê” – a música sucesso do Vinicius.

A velha escrava ficou indignada com a letra e falou pra minha mãe: “Cina, como é que você deixa cantar na sua casa uma coisa tão horrorosa?”. Maçu entendeu o xingamento, mas não traduziu nada para nós. Foi aí que a gente concluiu, de verdade, que a origem dela era aquela: escrava, nagô de verdade!

DEIXOU CASA PARA UM PEQUENO HERDEIRO

Todos nós temos muitas histórias desta negra de menos de 1m50, mas de muito valor, que foi grande cozinheira na Bahia. Quando jovem, ganhou dinheiro e construiu uma casa legal na Liberdade, um bairro baiano dominado pela população negra. Com o aluguel, tinha sempre uma graninha.

Perto de morrer, já bem velhinha e sem parentes, falou com a pessoa em quem confiava mais, meu pai: “Quero passar minha casa para ele”. Assim, foi assinada a escritura em nome do meu irmão Humberto, ainda adolescente, herdeiro da Maçu e grande amigo dela.

Maçu é o principal exemplo que tenho de um amor universal entre brancos e negros. Inesquecível! Aprendi com ela lições de dignidade.

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Você pode usar estas tags e atributos HTML: <a href="" title=""> <abbr title=""> <acronym title=""> <b> <blockquote cite=""> <cite> <code> <del datetime=""> <em> <i> <q cite=""> <s> <strike> <strong>

*