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abr 05 2014

HISTORINHA REAL: TRABALHO ESCRAVO COM FINAL QUASE FELIZ

RENATO RIELLA

Refletir sobre os remorsos às vezes é um bom esporte. Tenho refletido sobre Valdomiro, um exemplo de “trabalho-escravo” na minha casa da Bahia.

Na década de 60, meu pai, Agenor, tinha um armazém na Cidade Baixa de Salvador. Uma mulher bem pobre “deu” a ele um menino de dez anos para criar (tenho certeza que o garoto não era filho do meu pai). Minha mãe, Cecília, aceitou a novidade – embora já criasse quatro filhos.

Valdomiro herdava roupas nossas, estudava pela manhã em escola pública e brincava junto com a gente (embora mais novo). Aos poucos, ajudava em tarefas domésticas: acompanhava meu pai à feira, comprava pão no fim da tarde, etc.

Fora isso, assistia TV com a gente, jogávamos bola todo dia, íamos à praia bem próxima, etc. Éramos felizes – inclusive ele.

Hoje, seria trabalho-escravo. Naquela época, achávamos que meus pais estavam ajudando a criar Valdomiro. Pensando bem, é situação que ainda deve ser comum no Nordeste.

Quando ficou maiorzinho, passou a ajudar minha mãe em coisas mais sérias. Dona Cecília era ótima costureira. Valdomiro fazia a entrega das roupas produzidas por ela e até ganhava gorjetas das clientes ricas.

Minha mãe dizia assim: “Quem vai levar a encomenda é o Secretário!”. Valdomiro incorporou o apelido, como promoção, e todo mundo na rua passou a chamá-lo de Secretário.

HÁ COISAS QUE O SER HUMANO NÃO ESQUECE

Quando comecei a trabalhar em jornal, com 17 anos, praticamente perdi o contato com a minha família (só aparecia para dormir). Aos 19 anos, me sentia poderoso. Comprei carro, ganhava bem, aparecia na TV e raramente convivia com meu pessoal.

Num sábado, fui jogar bola com a galera da rua. De repente, perguntei pelo Secretário (Valdomiro). Me disseram que houve o arrombamento de uma casa luxuosa na rua e suspeitavam dele. Por isso, deixou de sair às ruas, com medo.

Fiquei feroz. Dei uma corrida até em casa, arrastei o Secretário pelo braço (ele devia ter uns 14 anos) e impus ele num dos times. Depois saí pela rua, ameaçando. Ai de quem falasse mal daquele que, embora vivesse em processo de trabalho-escravo, era praticamente meu irmão.

Décadas depois, houve a festa dos 80 anos do meu pai – só para a família. Saí de Brasília e fui até Salvador. Valdomiro foi um dos convidados para o almoço musical, que durou todo um domingo. Compareceu com o filho, um rapaz alto, com melhor aparência do que o pai.

Soube com detalhes que, aos 18 anos, Valdomiro começou a trabalhar com meu pai no armazém, com carteira assinada. Juntou algum dinheiro, comprou uma borracharia em ótimo ponto e trabalhava nisso há anos. Casou-se algumas vezes e tinha um problema: bebia muito.

No fim da festa de Agenor, Valdomiro já estava meio alto e resolveu falar. Disse, então, que nunca havia esquecido o dia em que enfrentei a rua para protegê-lo de um boato horrível (sinceramente, eu nem lembrava do fato). Rimos muito e ele me deu um abraço de borracheiro – de quebrar coluna.

Meu pai morreu. Dez anos depois, morreu minha mãe. Como abri mão da herança imobiliária, Cecília deixou a poupança dela para mim.

Nos dois enterros o Secretário não apareceu (não foi encontrado a tempo). Tirei parte da poupança da Cecília e mandei que meu irmão Humberto entregasse o dinheiro a ele, como lembrança da minha mãe. Dias depois, soube que Valdomiro havia morrido bem antes, do coração.

Rezei por ele e por mim – nos meus remorsos.

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