RENATO RIELLA
Acordo tarde e saio sem tomar café, dirigindo a mais de 80, com medo de encontrar Alexandre Garcia vigilante pelo caminho. Lanço olhares de águia para detectar pardais atocaiados nos postes.
Na ponte do Gilberto Salomão, uma garça se equilibra, linda, mas não me emociona. Estou ocupado, neurótico. Nem percebo que a maravilhosa Rádio Nacional toca “Se eu quiser falar com Deus”, num solo de trompete.
Minha cabeça está a mil, por quase nada, mas de repente o dia se transforma. Me surpreendo ao ver uma placa no lugar do famigerado pardal:
“JESUS TE AMA”
A placa está num local elevado, sem assinatura de qualquer multinacional da fé. É feita em preto e branco, numa grafia primária, meio suja. Colocada para me tornar feliz num dia inútil.
Percebo que a mensagem anônima sensibiliza também gente diversa que acompanho na vida, como Leda Flora, jornalista genial que marca presença nas últimas décadas brasilienses. Leda leu esta minha crônica há alguns anos e me pediu agora que republicasse o texto. Realmente, tem tudo a ver com o dia de Natal.
EXISTE MESMO
O BOM SAMARITANO?
O certo é que, ao passar pela placa de madeirite, penso:
-Qual bom samaritano perde tempo dirigindo uma mensagem de fé a um indivíduo da minha espécie, meio cético (ainda jornalista!), integrante das classes A ou B, morador do Lago Sul?
Afinal, Leonardo Mota (ou Ana Dubeux, ou Valéria Velasco, ou Padre Abdon), é mais fácil o Fluminense ganhar o Campeonato Nacional do que um camelo passar no buraco da agulha. Não é assim que está na Bíblia, Márcia Lima, freqüentadora das missas na Igreja Nossa Senhora do Perpétuo Socorro?
Conte à precoce Cecilinha, Nara Riella, que um ser anônimo fez esforço clandestino, na calada da noite, fugindo da fiscalização e da polícia, para dedicar a mim uma explosiva revelação no alto de um poste – “Jesus te ama” (enquanto alguns babacas picham inutilidades).
Não se vê o nome do patrocinador. O material usado é tosco, quase doméstico. Incrível como alguém tem este trabalho sem esperar nada em troca, nem mesmo um votinho para distrital. E esses caras fazem isso há décadas, sem nenhum retorno. Ou têm alguma compensação?
MUITAS PERGUNTAS
SEM RESPOSTA CONCRETA
Me surpreendo com gestos dessa natureza (se fosse o Turiba, faria uma poesia). Fiquei pensando: será que é um “soldado” do bispo Edir Macedo? Mas, nesse caso, o nome da Igreja Universal estaria destacado, à caça dos dízimos.
Depois imaginei que pode ser um crente fanático, daqueles que batem na nossa porta aos domingos pela manhã. Cruz credo!
Epa! Preciso melhorar minhas perspectivas. Acho que o autor da frase é um romântico como Paulo Timm, que crê na salvação do mundo a 30 segundos do Apocalipse. Talvez seja uma mulher guerreira, como minha amiga de décadas Lúcia Iwanow – ou um lutador como Chico Vigilante.
Será que esta pessoa da placa anônima vive tão confiante no ser humano que resolveu distribuir minutos de felicidade para todos nós, gastando dinheiro e tempo?
Ou o dono da placa é um homem marcado pela vida, que perdeu um parente em condições trágicas? Quem sabe – coitado! – escapou de alguma doença grave e está pagando promessa, prendendo placas como se fossem antipardais?
Nada disso! Precisamos acreditar que a boa criatura, em vez de sair alucinado num carro driblador de pardais, resolveu mandar um brado de amor para a humanidade. Sem discriminar ricos nem pobres – e sem cotas.
Simplesmente tudo isso!
Assim, nesta época natalina, plagio as placas dos postes e declaro a todos: JESUS TE AMA.
EXPLICAÇÃO INTERESSANTE
(Há dez anos, esta crônica foi publicada na revista Foco da Consuelo Badra. Na época, destaquei os amigos José Zunga e Karim Nabut.
Por causa da crônica, os responsáveis pelas placas misteriosas ligaram para Zunga, quando ele foi candidato a distrital. Pediram a ele material de campanha, prometendo apoiar seu nome – mas não se identificaram. Continuo sem saber quem são os “malucos” que penduram mensagens desse tipo nos postes da CEB.
Ao longo dos anos, encontrei pessoas que guardaram este texto, entre os quais Luciano Barroso, uma das vozes mais incríveis da locução brasileira.
E assim, Feliz Natal aos fantásticos amigos que tenho, todos muito construtivos – mesmo os ateus).
