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dez 30 2014

ARTIGO: FRANCISCO, O GORBACHEV DA IGREJA

CARLOS FINO

Há um paralelismo que pode ser traçado entre Francisco e Gorbachev. Tal como o então líder soviético, em 1985, o atual Papa tem aguda consciência dos problemas  com que se defronta a organização que dirige, cada vez mais distante do comum dos mortais.

Alimenta, de igual modo, um profundo desejo de mudança, e propõe, na mesma atitude de fundo, um certo regresso às origens, como forma de renovar a fé.

Mais: este, como aquele, depara-se com forte oposição do núcleo duro do sistema, temeroso de perder posições e privilégios, e suspeitando que as alterações propostas, por mais bem intencionadas que sejam, acabem por conduzir ao esboroar de todo o edifício.

Se quiséssemos prolongar o paralelismo, poderíamos acrescentar o fato de ambos serem aplaudidos no mundo e encarados com desconfiança pelos seus, internamente.

Desconfiança que só pode ter crescido depois do surpreendente discurso que o Papa proferiu, há uma semana, perante a Cúria de Roma.

Quando todos aguardavam simples amenidades e gentilezas de Natal e Ano Novo, Francisco traçou um verdadeiro requisitório dos males de que, no seu entender, enferma a mais alta hierarquia da Igreja Católica.

Não é coisa pouca – vai desde a simples falta de coordenação, excesso de planeamento e trabalho, àquilo que designou por “Alzheimer espiritual” e fossilização mental, passando pela inveja, vaidade, carreirismo, cobiça, má-língua e intriga, “semeando a discórdia como Satanás.”

Foi como se, inesperadamente, o Papa abrisse a cortina e expusesse, aos olhos do mundo, a nudez crua da verdade, os males ocultos de todos os presentes.

De todos esses males – a que poderiam acrescentar-se as sombrias e pouco virtuosas manipulações financeiras do Banco do Vaticano –  há muito se falava e escrevia, dentro e fora da Igreja. Mas nunca um Papa os havia assumido de forma tão frontal.

Imagina-se o escândalo e a velada indignação com que muitos devem ter acolhido as suas palavras.

 

OPOSIÇÃO DE TODOS OS QUADRANTES

O que terá levado este Papa desconcertante a agir assim? Suspeito que foi a crescente consciência de como são poderosas as forças que se opõem ao seu estilo despojado, às suas opções de fundo e projetos de reforma.

Mesmo perante os leigos e o mundo, o seu estado de graça já não é absoluto, desde que recusou abrir as portas do sacerdócio às mulheres e, mais recentemente, decidiu não receber em audiência o Dalai-Lama.

Mas é sobretudo no plano interno que se manifestam as maiores divergências e oposições.  Exemplo disso é o que se passou recentemente no Sínodo da Família, com o confronto entre os que são favoráveis à comunhão dos divorciados que voltam a casar e os que a ela se opõem terminantemente.

Situação idêntica existe em torno da questão dos homossexuais, entre aqueles que defendem “a abertura da Igreja ao seu acolhimento” e aqueles que persistem em manter a discriminação como “perfeitamente justificada”.

Face ao avanço de algumas posições mais modernizadoras, o cardeal norte-americano Raymond Burke, um dos expoentes da ala mais conservadora da Cúria, chegou mesmo a afirmar, em outubro passado, existir  “o risco de um cisma” se, até a segunda parte do Sínodo (em 2015), os bispos forem vistos a “contrariar os ensinamentos e práticas constantes da Igreja, pois estas são verdades imutáveis”.

Burke foi entretanto afastado do Supremo Tribunal do Vaticano e enviado para Malta – um movimento que foi visto como represália pelas suas posições.

Mas não é só dos setores mais conservadores que vêm as críticas. Elas surgem também das alas mais reformadoras. Uns acusam o Papa de ir demasiado longe nas suas propostas, outros de não o fazer de forma mais decidida.

Ao expor Urbi et Orbi os males da Cúria, Francisco terá pretendido enfraquecer os seus opositores e conseguir assim melhores condições para as mudanças que pretende operar.

Mas o próprio fato de que tenha tido de proceder assim é bem revelador da magnitude dos obstáculos com que se defronta.

 

E AGORA, FRANCISCO?

Nas batalhas que se irão seguir, o jogo de alianças é crucial.

O exemplo de Gorbachev mostra que a melhor forma de superar as oposições à reforma não será recuar e ceder nos seus projetos.

A certa altura, temendo perder o controlo da situação, o líder soviético cedeu e tentou pactuar, nomeando para cargos-chave algumas das figuras mais conservadores do antigo regime.

Quando pensava ter assim adquirido estabilidade, foi afastado por um golpe montado por esses mesmos elementos. E acabou por perder o poder com uma dinâmica nova que não previra.

O Vaticano, claro, não é o Kremlin. Nem a Cúria o Comitê Central. Mas há algum paralelo nas lutas intestinas de todos os aparelhos de poder e nas dinâmicas que os reformadores introduzem em situações de bloqueio.

Para não ter o destino de Gorbachev, o Papa precisa de não perder a fé. (do site Portugal Digital)

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