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maio 09 2014

QUEM ENTENDE DE PRECONCEITO RACIAL É QUEM PASSA POR PRECONCEITO RACIAL

JAN RIELLA (QUASE BRANCO)

Está em discussão a futura lei que reserva 20% dos cargos públicos do Poder Executivo federal para negros (pretos e pardos).

Primeiramente, me posicionei contra o projeto de lei da presidente Dilma Rousseff. Sabem por quê? Porque sou mulato. Isso mesmo! Me considero mulato e me posicionei contra, pensando: essa vaga não pode ser para mim.

Eu, mulato, nasci e cresci em uma casa de dois andares e piscina no Lago Sul, em Brasília. Sempre estudei nos melhores e mais caros colégios, cursei anos de Inglês no Thomas Jefferson, ganhei carro zero com 18 anos.

Resumindo, sempre tive quase tudo que quis, inclusive oportunidades de estudo.

Então, pensei: eu não mereço essa vaga.

Seguindo a linha do meu raciocínio inicial, acreditava que um projeto justo seria aquele que exigisse, além da cor da pele, que o candidato tivesse estudado pelo menos metade da sua vida em escolas públicas.

Porém, como já perceberam, mudei de idéia sobre a lei. E o que me fez mudar de ideia? Acho que foi eu mesmo, me perguntando se essa vaga caberia a mim.

Daí, passei a me perguntar qual seria o objetivo dessa política pública. Entendi que é pura e simplesmente combater o preconceito, a discriminação racial.

 

ACREDITEM: SOFRI PRECONCEITO DESDE CRIANÇA

Mudei de ideia quando pensei sobre a vida que tive desde a infância. Percebi que, mesmo tendo nascido em uma família de classe média alta, sempre sofri preconceito.

E, para facilitar o processo de empatia, vou descrever alguns poucos acontecimentos que representam o que é ser mulato vivendo em um mundo de brancos.

Começo quando tinha seis anos de idade. Lembro de estar tomando banho e esfregando o sabão no braço com toda a força, porque não queria mais sofrer bullying no colégio particular. Eu queria tirar a cor de mim, porque as outras crianças me chamavam de preto e diziam que era porque eu não tomava banho.

Durante toda a minha infância e adolescência em Brasília, poucas vezes houve outro pardo ou preto na sala de aula.

Com o tempo, o bullying foi diminuindo, mas o preconceito sempre esteve lá, manifestado na ironia, na piada e na rejeição. O preconceito apenas se camuflava.

Até os 18 anos, já havia sido confundido com o jardineiro da minha própria casa, o garçom da balada dos playboys e o flanelinha do estacionamento do trabalho da minha mãe. Sempre levei essas “confusões” com bom humor, pois não conseguia ver culpa no outro.

Pensava que as pessoas refletiam nos seus comportamentos o que elas, inocentemente, percebiam que era a regra: o negro é o subalterno.

 

NO SUL DO PAÍS É AINDA MAIS GRITANTE

Quando vieram os tempos de faculdade, fui estudar em um estado do Sul (Santa Catarina). Ao me mudar, meu pai comprou um apartamento em um bom condomínio, no qual morei por quase cinco anos.

Durante todo esse tempo, fui confundido diversas vezes com porteiro, zelador e jardineiro. Como disse, sempre levei com bom humor.

Um dia a realidade se mostrou mais real. Nesse mesmo condomínio, fui acusado por dois moradores de estar roubando meu próprio carro.

Para que ninguém pense que as circunstâncias da situação poderiam justificar tal desconfiança, irei explicá-las.

Lembro que era inverno. Apesar do dia ensolarado, estava muito frio. Entrei de carro no condomínio e estacionei o veículo na vaga do meu apartamento. Desliguei o motor e hesitei um pouco em sair do veículo, pois fora dele estava bem mais frio do que dentro.

Não mexi em nada, não me movi; só fiquei ali alguns segundos parado.

Então, percebi dois homens apontando para o carro e conversando algo. Naquele momento, já imaginei o que estava acontecendo. Resolvi sair do carro e ir para o meu apartamento, antes que meus vizinhos fizessem algo.

Desci, dei alguns passos e ouvi um deles gritando na minha direção: “Hei, hei! Aonde você vai? Onde você mora?”

Depois disso, houve uma longa discussão, em que todas as pessoas levantaram a voz. Eles insistiam para que eu os acompanhasse até a portaria para que provasse que era morador daquele ilustre recinto.

Me provocavam, dizendo coisas como: “Quem não deve não teme”. É claro que não fui. Posso dizer que nunca me senti tão ofendido e triste ao ver nos olhos daqueles dois homens a certeza de que estavam fazendo a coisa certa, tratando o negro (mulato) como bandido.

Para eles, era muito mais provável que eu fosse um ladrão do que um morador. Às vezes, quando me lembro desse acontecimento, me arrependo de não ter chamado a polícia para acusar os indivíduos formalmente.

Se acontecesse hoje, eu agiria diferente.

 

 

SE GOSTAR DE LOURAS, CUIDADO!

Continuando com os acontecimentos, vou falar um pouco de mulheres. Quando o negro diz que gosta de loiras, alguns dizem que ele é racista. Besteira!

Sou de uma família de origem baiana. Sempre que viajo para a Bahia, vejo inúmeros europeus vivendo relacionamentos apaixonados com negras. Eles são racistas?

Uma vez perguntei para um suíço porque ele gostava tanto de negras e ele respondeu: “A beleza branca eu admiro em mim mesmo todos os dias ao me olhar no espelho; a negra é diferente, é rara, me fascina”.

Então, não me venham dizer que um negro é racista só porque gosta de loiras.

Durante todo o tempo que vivi no Sul, fui abordado por loiras. Na verdade, nunca vivi em um local em que as mulheres me assediassem tanto. Lá, eu percebi como as pessoas gostam do diferente e passei também a gostar.

Posso dizer que, no começo, me senti um pouco assustado com tantos olhares de desaprovação, principalmente dos mais velhos. Sempre tentei me solidarizar com esses idosos, pois dizia para mim mesmo que não sabia em que sociedade aquela pessoa havia sido criada.

Mas o que me incomodava mesmo eram os olhares de desaprovação dos jovens da minha geração, pois representavam o que estava por vir.

Quanto ao preconceito, o Sul não foi fácil pra mim, mas não pensem que é tão diferente do resto do país. O Brasil é um país racialmente preconceituoso.

 

PRECONCEITO TAMBÉM EM BRASÍLIA

A minha primeira entrevista de emprego foi para uma vaga de estagiário no Banco do Brasil. Quando entrei na sala da entrevistadora, ela me tratou como se eu fosse do pessoal da limpeza e me deu um vale-transporte.

Acredito que a nova lei terá a função específica e importantíssima a que se destina: difundir a ideia de que o preto, o pardo, o branco e qualquer pessoa de outra cor podem ser e podem fazer qualquer coisa na vida.

A lei buscará combater o preconceito racial. É claro que a desigualdade econômica e social também deve ser “atacada” por políticas públicas, mas acredito que já sejam.

Se a lei conseguir, a curto e médio prazo, fazer com que algumas pessoas passem a considerar a possibilidade daquele negro que está no restaurante em que você almoça, no condomínio em que você mora ou no órgão público que você frequenta, ser igual ao branco que está do lado dele, é válido. Simples assim!

COMENTÁRIO DE RENATO RIELLA: Jan é meu segundo filho, concursado da Embrapa, bem resolvido na vida. Tenho muito orgulho de receber este depoimento dele, uma pessoa que, para mim, sempre foi branco. Tem pai que é cego!

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